Desde o início da pandemia, o ANDES-SN vem defendendo a vida acima dos lucros e o retorno seguro às atividades escolares presenciais, o que, na avaliação do Sindicato Nacional só é possível com a vacinação de todas e todos. Para ampliar o debate sobre o Plano Nacional de Vacinação e sobre a omissão do governo federal em atuar no combate à pandemia e necessidade de defesa da vacinação pública e gratuita para toda a população, conversamos com o professor Gilberto Calil. "É absolutamente imprescindível que esta vacinação seja inteiramente organizada a partir do Sistema Único de Saúde (SUS) e das prioridades estabelecidas no Plano Nacional de Vacinação, e gratuita", afirma o docente.
Gilberto Calil é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Integra a atual diretoria do ANDES-SN como 2º Tesoureiro da Regional Sul do ANDES-SN e é Presidente da Adunioeste Seção Sindical (Sindicato de Docentes da Unioeste). Desde abril de 2020, Calil apresenta o quadro "Números da Pandemia", no canal de youtube do Esquerda Online. Confira a entrevista.
Até o momento, não temos um Plano Nacional de Vacinação estabelecido e doses suficientes de vacinas para atender, pelo menos, a parcela mais vulnerável da população. Como você avalia a disponibilidade de vacinas no país, a postura dos governos Federal, estaduais e Distrital na compra de vacinas e os critérios de vacinação?
GC: A rigor existe um Plano Nacional de Vacinação. Existe um documento público do governo federal, cuja segunda edição é datada de 25 de janeiro, há uma semana, que estabelece 27 grupos prioritários. O problema é que este plano é uma absoluta ficção até que tenhamos as vacinas em quantidade suficiente para que, ao menos num primeiro momento, estes 27 grupos prioritários, que somam 77,2 milhões de brasileiros, ou 36% da população do país, possam ser atendidos. A grande contradição é entre o que o documento estabelece e o que são as políticas públicas efetivas do governo em relação à sua disposição clara em atrasar o processo de vacinação, em recusar a negociação para a compra de vacinas, o que torna, efetivamente, algo muito distante, do ponto de vista temporal, o cumprimento daquilo que está colocado no plano.
Do ponto de vista mais geral, esses 27 grupos que estão estabelecidos incluem todos aqueles que se considerariam como sendo os grupos prioritários: os profissionais de saúde, a população idosa, num primeiro momento aquela em condição institucionalizada - em asilos e espaços como esses -, e os mais idosos, num escalonamento, inicialmente, acima de 80 anos, depois por faixa etária de 5 em 5 anos e uma série de outras categorias, que estão dentro de um ordenamento no plano, que não é claro se ele estabelece de forma rigorosa que essa sequência seja definida. Um aspecto que chama a atenção e que é bastante questionável é que a população privada de liberdade, que tem alto índice de contaminação, assim como a população em situação de rua, não está entre as primeiras prioridades, estão lá em 14º e 15º grupo, o que demoraria bastante tempo para serem atingidas. Do ponto de vista da comparação internacional, aqui tem algo complicado, que parece atender à uma perspectiva ideológica do governo de deixar essas populações mais para trás.
No entanto, de forma geral, o conjunto mais importante está contemplado, mas contemplado em abstrato. No concreto, o que temos é um volume muito baixo de vacinas. Hoje [no dia 02 de fevereiro], temos registradas 2,3 milhões de pessoas vacinadas no Brasil, o que significa basicamente 1% da população, ou poderia se dizer, menos de 1/30 do que está previsto como sendo a população prioritária.
Do ponto de vista das negociações que o governo fez em relação à compra de vacinas, das vacinas fundamentais, que seriam necessárias para isso, não há nenhuma previsão. O número que se tem nesse primeiro momento é muito inferior, e o governo vem recusando a estabelecer negociações, reiteradamente. Talvez, o mais digno de registro foi o fato de ter ficado vários meses recusando o consórcio internacional do Covax, que permitiria, só a partir dali, vacina para 50% da população brasileira, o que já é mais do que o conjunto desses grupos prioritários. O Brasil aderiu muito tardiamente ao convênio e com uma carga de doses muito inferior a essa, porque aderiu com a cota mínima. E o exemplo mais recente disso foi que a gente teve a liberação da vacina da Johnson e Johnson, que é uma vacina extremamente promissora e que tem a vantagem de ser dose única, e o governo também não estabeleceu negociação e não demonstrou interesse e permanece nessa postura de postergar a resolução da situação, ao contrário de todos outros governos do mundo que disputam as doses.
Diante do cenário que vivenciamos, com aumento no número de casos, com mais de mil mortes diárias e fim do Auxílio Emergencial, quais parcelas da população você avalia que deveriam estar nas prioridades de vacinação?
GC: Em relação a quais parcelas da população devem ser prioridades, o critério internacional que a maior parte dos países utiliza é iniciar com os trabalhadores de saúde, não apenas pelo risco pela superexposição, mas também por garantir a manutenção do funcionamento dos equipamentos de saúde e seguir numa ordem que privilegie as populações com maior risco de agravamento da doença. Ou seja, os mais idosos e os portadores de comorbidades graves, a população privada de liberdade e, a partir disso, estabelecer um escalonamento que leve em consideração estes elementos. Não é muito diferente do que está colocado no Plano Nacional de Vacinação. O problema é que para que se atenda a isso, precisaríamos de um número de doses de vacina muitíssimo superior ao que está anunciado em médio prazo. Os trabalhadores em educação básica estão em 17º, são 2,7 milhões, e os trabalhadores em educação superior são outros 720 mil, estão em 18º. Até que se chegasse a eles, aos trabalhadores em educação, a gente teria em torno de 60 milhões de pessoas vacinadas, mas a imensa maioria deste grupo são idosos e portadores de comorbidades, além de trabalhadores em saúde. Portanto, não haveria muita margem para que se pleiteasse que os trabalhadores em educação estivessem mais acima. O que se deve fundamentalmente pleitear é, primeiro, que há a absoluta urgência de se ter este quantitativo de doses [de vacina] e, em segundo lugar, que não há nenhuma possibilidade de cogitar o retorno presencial às aulas antes que isso se dê.
Uma das questões em pauta é o retorno presencial às atividades escolares. Você acredita que esse é o momento para retomar as atividades presenciais nas escolas?
GC: A possibilidade ou a cogitação de retorno às atividades presenciais nesse momento é um completo absurdo, por um conjunto de razões que, para simplificar, a gente pode citar talvez quatro. A primeira delas é que a condição, especificamente em relação aos professores, de exposição é de superexposição, em diversas turmas, e um contato com um número muito grande de estudantes, mesmo que dividindo-se a turma e, portanto, seria completamente absurdo colocar um trabalhador nessa condição de exposição sem que ele esteja vacinado. No entanto, esta condição [vacinação] ela é prévia, mas ela é absolutamente insuficiente, porque há um segundo fator que é de que a maior parte dos estudantes tem familiares em casa que são idosos, que são portadores de comorbidades, que têm as mais diversas características e, portanto, eles também têm que ser vacinados antes que se tenha a possibilidade de retomada, ainda que gradativa, das aulas presenciais. Então, é imprescindível a vacinação dos professores, dos trabalhadores em educação, mas também de todos os demais grupos que são prioritários e que devem ser efetivamente prioritários. Só que, além disso, nós estamos numa condição de desenvolvimento, de avanço de uma nova cepa que é ainda mais transmissível, e isso coloca um terceiro fator que é o fato de que o índice de transmissão tende a aumentar e muitos calculam que até o final de fevereiro essa nova cepa pode se tornar dominante, o que modificaria para pior a dinâmica da pandemia no Brasil. E o quarto fator tem a ver com o fato de que os dados oficiais desmentem uma série de compreensões simplórias em relação ao suposto baixo risco de contaminação das crianças e a baixa letalidade das crianças, uma vez contaminadas.
Nos números oficiais, até o dia 04 de janeiro - isso está no boletim epidemiológico 44 - nós tínhamos já 1.203 crianças e adolescentes que foram a óbito, vítimas comprovadamente da Covid-19. E outras 1.970 crianças e adolescentes, de 0 a 19 anos, que foram a óbito vítimas de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) Não especificada, ou seja, que faleceram por problemas respiratórios com um quadro análogo ao da Covid-19, mas que não tem a comprovação final de que foi Covid-19. E outros 63 óbitos que estavam ainda em investigação. Isso soma, entre Covid-19 e SRAG, 3.242 crianças e adolescentes que faleceram até o dia 4 de janeiro de 2021. É um número absolutamente significativo, relevante, ainda que proporcionalmente indique que o risco é menor, mas o montante de óbitos dessa categoria, dessas faixas etárias, não é, em absoluto, desprezível. E, ainda, se deveria considerar que as pesquisas recentes têm indicado um índice de transmissibilidade muito elevado nas crianças. Uma pesquisa recentemente publicada na revista Lancet indica que as crianças têm 60% mais transmissibilidade do que os adultos, o que significa que, mesmo aquelas que não venham a desenvolver sintomas, levam o vírus para suas casas, transmitem, propagam o vírus.
Então, o conjunto desses fatores nos indica que é absolutamente despropositado pensar em qualquer modalidade de retorno às aulas presenciais neste momento. Quando nós tivermos todos os grupos prioritários vacinados e, nesse caso, com o montante que temos hoje seria 36% da população, provavelmente ainda não existam as condições, mas aí os dados epidemiológicos vão dizer qual é o patamar de circulação e qual seria o impacto e, ao menos, nós teremos os grupos mais vulneráveis já protegidos. O mais provável é que se demande algo próximo de 70% da população vacinada, para que haja essa possibilidade [de retorno às aulas presenciais]. O que é certo é que neste momento é um completo absurdo.
Como seria possível pensar o retorno presencial às escolas e universidades? Com quais condições?
GC: A condição fundamental que se deveria considerar para o retorno às aulas em escolas e universidades é a interrupção do contágio comunitário do vírus. Pode parecer algo absolutamente distante, mas países que tomaram medidas concretas e efetivas conseguiram interromper o contágio comunitário do vírus. Seja na China, no Vietnã, em Taiwan, seja na Nova Zelândia, na Austrália, são inúmeros os países com distintas características que tiveram políticas públicas capazes de, pela contenção da propagação, interromper a transmissão comunitária. Nós já sabemos que no Brasil isso é absolutamente inviabilizado pelas políticas públicas e pelos exemplos que vêm da autoridade máxima do país e que, portanto, não teremos isso. E, portanto, a nossa única possibilidade de interromper a transmissão comunitária é através da vacinação massiva da maior parte da população. Consequentemente, essa é a condição fundamental.
Há o debate sobre incluir professores e professoras nas prioridades de vacinação. Como você avalia essa questão? Você acha que adianta vacinar só professores e professoras e não os demais trabalhadores escolares e também os estudantes?
GC: O debate sobre a inclusão de professores e professoras no grupo prioritário de vacinação me parece que coloca uma falsa questão na medida em que já estamos colocados entre os grupos prioritários. Como eu disse antes, são 27 grupos prioritários e que reúne 77 milhões de pessoas. Isso significa que estamos entre os prioritários, mas não há, em curto prazo, nenhuma perspectiva de vacinação dos professores. O que não me parece razoável seria propor que a vacinação dos professores se dê antes da população mais idosa, dos profissionais da saúde e da população com comorbidade, porque há um ordenamento que tem sentido e que tem a ver com o risco de agravamento e com o risco de óbito. Então, para acelerar o processo de retomada das aulas presenciais, subverter esta sequência me parece insustentável. Como é insustentável propor a retomada das aulas presenciais sem a vacinação dos professores. Então, acho que o que tem de mal colocado nesse debate é a ideia de que os professores deveriam ser incluídos, eles já estão. Nós já estamos incluídos entre os grupos prioritários, dentro de um ordenamento que tem a ver com o risco de agravamento das condições e que, portanto, nos coloca, dentro desse grupo, em 17º e 18º lugar [os trabalhadores da educação básica e superior, respectivamente]. Como eu disse antes, talvez o que mais salte à vista nesse ordenamento é que a população privada de liberdade deveria estar mais acima pelas condições de surto no ambiente carcerário. Não me parece que haja muitas possibilidades de mudança da ordem dos docentes, sem que se passe a frente da população mais idosa e da população com comorbidades, o que a meu ver seria injustificável.
Qual a argumentação do ANDES-SN para a defesa da consigna "Vacina para todos e todas já"?
GC: A consigna “Vacina para todos e todas, já!” é absolutamente fundamental. É uma consigna que pode unificar um conjunto de lutas na medida em que identifica qual é a única possibilidade real, efetiva e concreta de retomada da normalidade, de superação da pandemia e de fim dessa nova normalidade, que implica em rotinizar mil óbitos diários por Covid-19. Não há, infelizmente, no estágio que estamos hoje, com a desinformação, com a descrença, com a deseducação de medidas de contenção, alguma possibilidade de superação da pandemia no Brasil sem que a maior parte da população esteja vacinada. Efetivamente, alguns países conseguiram a contenção tomando as medidas corretas. Mas isso hoje é de tal forma distante no Brasil, que a campanha pela vacinação, a conquista da vacinação geral do conjunto da população, para que se chegue o mais rápido possível ao patamar necessário para reverter a transmissão comunitária é o que efetivamente coloca as possibilidades de superação da pandemia.
E é absolutamente imprescindível que esta vacinação seja inteiramente organizada a partir do Sistema Único de Saúde (SUS) e das prioridades estabelecidas no Plano Nacional de Vacinação, e gratuita. No momento em que tivermos um sistema paralelo de vacinação paga, a probabilidade de que setores minoritários, setores economicamente dominantes sintam-se protegidos e, portanto, defendam políticas ainda mais radicalmente negacionistas é muito grande. É claro que isso seria uma incorreção porque a imunização que a vacina produz ela se dá no coletivo. Por isso, deve ser fundamental a consigna “Vacina para todos e todas, já”, mas sempre lembrar (a defesa) da Vacina pública, gratuita e distribuída pelo SUS, dentro das prioridades estabelecidas no Plano Nacional de Vacinação.