Atlas da Violência 2020 denuncia aumento no homicídio de pessoas negras no país

Publicado em 01 de Setembro de 2020 às 11h11. Atualizado em 02 de Setembro de 2020 às 14h20

Entre 2008 e 2018, os casos de homicídio de pessoas negras (pretas e pardas) aumentaram 11,5%. Já o número de casos desse tipo de violência em relação a não negros (brancos, amarelos e indígenas) diminuiu 12,9%, no mesmo período. É o que aponta o Atlas da Violência 2020, divulgado na última quinta-feira (27), pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Diferente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que compila e analisa informações de registros policiais sobre criminalidade, o Atlas da Violência se baseia nos dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS) e das denúncias recebidas pelo Disque 100.

O relatório evidencia o racismo estrutural que perpassa também os casos de violência no Brasil e aponta, por exemplo, que, para cada pessoa não negra assassinada em 2018, 2,7 negros foram mortos, sendo que estes últimos representam 75,7% das vítimas. Outro dado que reforça essa compreensão é o fato da taxa de homicídios entre negros chegar a 37,8 a cada 100 mil habitantes, enquanto entre não negros esse número é de 13,9 para cada 100 mil habitantes.

"Um elemento central para a gente entender a violência letal no Brasil é a desigualdade racial. Se alguém tem alguma dúvida sobre o racismo no país, é só olhar os números da violência porque traduzem muito bem o racismo nosso de cada dia", disse a diretora executiva do FBSP, Samira Bueno, uma das pesquisadoras que elaborou o documento, em entrevista à Agência Brasil.

"Todas essas ações [do poder público] que, de algum modo, atuam na prevenção à violência têm sido capazes, apesar da magnitude do fenômeno [da violência], de prevenir a morte de pessoas não negras, de proteger as vidas de não negros. Porém, quando a gente olha especificamente para a taxa de homicídio da população negra, no mesmo período, no mesmo país, cresceu 11,5%. É como se a gente estivesse falando de países diferentes, territórios diferentes, tamanha a disparidade quando a gente olha para o fenômeno da violência, segmentando entre negros e não negros", complementou ela.

Violência contra as mulheres
De acordo com o Atlas, em 2018 uma mulher foi assassinada no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas. Nesse quantitativo, estão incluídas as ocorrências de feminicídio, embora não estejam especificadas. E, embora o total de homicídios de mulheres tenha apresentado redução de 8,4%, entre 2018 e 2017, o racismo também fica explicitado quando feito recorte de raça. Nesse período, houve uma queda de 12,3% nos homicídios de mulheres não negras, enquanto a redução para mulheres negras foi de 7,2%.

O estudo afirma que analisando o período entre 2008 e 2018 essa diferença fica mais evidente: enquanto a taxa de homicídios entre as mulheres não negras caiu 11,7%, entre as mulheres negras aumentou 12,4%. "Então, que políticas são essas que a gente está implementando, que protegem as mulheres não negras e não são capazes de proteger as negras?", questiona Samira.

Segundo a diretora do FBSP, particularidades referentes ao dado vêm sendo constatadas ao longo do tempo. Como exemplo, ela cita o envolvimento de mulheres com membros de facções criminosas e que acabam sendo executadas. Para ela, a situação consiste em "uma nova gramática das facções", que precisa ser assimilada.

Assassinato da nossa juventude
O levantamento também aponta a alta preponderância de jovens entre as vítimas de assassinatos ocorridos em 2018. Ao todo, 30.873 jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos foram mortos naquele ano, quantidade que equivale a 53,3% dos registros. 

Na década analisada, percebeu-se uma elevação de 13,3% no total de casos de jovens mortos. Os homicídios foram a principal causa dos óbitos da juventude masculina, representando 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; 52,3% entre o grupo com faixa etária de 20 a 24 anos; e 43,7% daqueles com idade entre 25 e 29 anos.

Quando se faz o recorte de gênero, observa-se uma diferença importante no percentual de homicídios como causa de morte. Entre elas, são de 16,2% entre aquelas que têm entre 15 e 19 anos; 14% na parcela de 20 a 24 anos; e de 11,7% entre jovens com faixa etária de 25 a 29 anos.

"É uma geração inteira que a gente está matando e é algo que não nos sensibiliza, infelizmente, que vai passando. [As vítimas] são sujeitos [considerados] descartáveis", afirma Samira.

Invisibilidade da violência contra LGBTTIs
A violência para a população LGBTTI aumentou em 2018. Em 2017, foi a primeira vez na história do Atlas da Violência que os recortes de LGBTTIfobia entraram no levantamento, o que ainda impossibilita uma série histórica.

Segundo os pesquisadores do FBSP e do Ipea, a escassez de indicadores oficiais de violência contra a população LGBTTI é ainda um dos problemas centrais. Uma medida para avançar nesse ponto, sugerem, seria incluir questões relativas à identidade de gênero e à orientação sexual no próximo Censo do IBGE.

“Paralelamente, é essencial que essas variáveis se façam presentes nos registros de boletins de ocorrência, para que pessoas LGBTQI+ estejam contempladas também pelas estatísticas geradas a partir do sistema de segurança pública. Sem esses avanços, é difícil mensurar, de forma confiável, a prevalência da violência contra esse segmento da população, o que também dificulta a intervenção do Estado por meio de políticas públicas”, aponta o estudo.

De acordo com o Atlas, tanto o Grupo Gay da Bahia (GGB) quanto a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) realizam, através de buscas ativas junto a suas redes, contagens de pessoas LGBTTIs vítimas de violência, que resultam em relatórios anuais disponibilizados em suas páginas na internet, ressaltando a despreocupação do Estado brasileiro no que tange à mensuração e incidência sobre o fenômeno da violência LGBTfóbica.

Fora os dados recolhidos pela sociedade civil, o estudo aponta que existem aqueles relativos a denúncias registradas pelo Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), e dos registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, os quais são analisados no Atlas.

De acordo com dados do Sinan, a violência psicológica entre LGBTTIs aumentou 7,4% entre 2017 e 2018, passando de 1.693 casos para 1.819.  No mesmo período, os casos de violência física registrados por esse sistema aumentaram 10,9% (de 4.566 para 5.065). Já em relação a outros tipos de violência, o aumento é gritante: 76,8% a mais em 2018, de 1.192 para 2.108. O total das violências contra LGBTTIs teve um aumento de 19,8% em 2018, de 7.701 para 9.223.

“Esse é um dado muito precário, não só da população LGBT+, mas do Sinan. O Sinan é um sistema que precisa de muitos esforços pra ter abrangência nacional. Esses são os dados e nos mostram a ponta de um iceberg, embaixo há muitas coisas que não conseguimos olhar”, explica Samira.

Apesar de uma queda de 28% nos registros de homicídios contra a população LGBTTI, o Atlas aponta um aumento de 88%, de 2017 para 2018, nas tentativas de homicídios entre essa parcela da população, segundo os dados do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Fatores para queda no total de homicídios
Para os pesquisadores, um dos fatores que pode ter contribuído para a redução dos homicídios em 2018 diz respeito à piora substancial na qualidade dos dados de mortalidade. Segundo o levantamento, o total de mortes violentas com causa indeterminada (MVCI) aumentou 25,6%, em relação a 2017, fazendo com que tenham permanecido ocultos muitos homicídios.

“Em 2018, foram registradas 2.511 MVCI a mais, em relação ao ano anterior, fazendo com que o ano de 2018 figurasse como recordista nesse indicador, com 12.310 mortes cujas vítimas foram sepultadas na cova rasa das estatísticas, sem que o Estado fosse competente para dizer a causa do óbito, ou simplesmente responder: morreu por quê?”, explica o relatório.

Os pesquisadores apontam ainda outros fatores, reunidos em três blocos, para explicar uma possível redução nos registros de homicídio em 2018: i) pela continuidade da trajetória de diminuição de homicídios na maioria das UFs, já observada nos anos anteriores, até 2017 (que tem a ver com a questão demográfica, com o Estatuto do Desarmamento e com o amadurecimento qualitativo das políticas estaduais); ii) pelo armistício (velado ou não) entre as maiores facções penais nos conflitos ocorridos, principalmente, em seis estados do Norte e Nordeste do país; 5 e iii) pelo aumento recorde do número de MVCI, que pode ter ocultado milhares de homicídios.

Confira aqui o Atlas da Violência 2020

Com informações da Agência Brasil e da Agência Ponte de Notícias

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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